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15/08/2023

Quintal de Clorofila - O Mistério dos Quintais (1983)

Quando se fala no rock gaúcho, as primeiras bandas que vêm à cabeça de um cara que conhece um pouco sobre rock são Engenheiros do Hawaii e Nenhum de Nós. Aquele que é mais eclético ainda lembra do Bixo da Seda de Fughetti Luz (e que na verdade teve seu sucesso quando foram morar no Rio de Janeiro), do TNT de Charles Master, dos Replicantes de Wander Wildner ou dos Cascavelletes de Nei Van Soria. Na própria história musical gaúcha, Lupicínio Rodrigues e Nelson Gonçalves são reis, e os mais citados pela população em geral são Elis Regina e Nei Lisboa, entre outros que fizeram do auditório Araújo Viana e do Parque Farrupilha (viva a Redenção!!!!) um marco na cena Porto Alegre.

Porém, esses últimos, os quais faziam parte da Turma do Bonfim (bairro aqui de Porto Alegre), surgiram em meados dos anos oitenta e tiveram seu auge exatamente no lançamento dos primeiros álbuns das bandas já citadas. 

Mas, durante a década de setenta e o início dos oitenta, os patrões dos pampas gaúchos não estavam sentados nos galpões da capital, mas sim espraiando sua musicalidade a partir de duas cidades do interior. O mais famoso deles foi os Almôndegas, de Pelotas, que revelou ao Brasil, entre 1974 e 1979, os irmãos Kleiton e Kledir Ramil e uma sonoridade gauchesca com tempero carioca que abalou as rádios nacionais com músicas como "Canção da Meia-Noite" e "Vento Negro", e que irá merecer uma matéria especial para essa sessão. 

O outro patrão em questão também revelou dois irmãos, Dimitri e Negendre Arbo. Surgidos em 1978 e vindos da cidade de Santa Maria, Dimitri e Negendre estudaram na Escola de Artes da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e, juntos, criaram o excepcional Quintal de Clorofila. Em 1983 conseguiram lançar seu único registro, o qual estraçalhou tudo o que já poderia ter se imaginado em termos de musicalidade, misturando elementos do pampa gaúcho à uma sonoridade de diversos instrumentos no mínimo curiosos, como telhas de zinco, galões de gasolina, serrotes, entre outros criados especialmente pela dupla de irmãos. 

Na época do início da banda, outros grupos semeavam e colhiam suas sonoridades misturando folk rock com elementos gaúchos, tais quais o Couro, Cordas e Cantos, Grupo Terra Viva e Os Tápes, mas o Quintal foi um dos únicos a conseguir lançar um LP, o maravilhoso e cobiçado O Mistério dos Quintais, de 1983. Lançado pelo selo Bobby Som, o álbum é um achado na musicultura gaúcha. Contando com diversos elementos tradicionais do pampa e com a participação de Paulo Soares tocando violão em algumas faixas, O Mistérios dos Quintais está fortemente construído em um clima emocional e musical criado pelos irmãos Arbo, assessorados por diversos instrumentos acústicos como violões, banjo, bandolim, flauta, ocarina, saxofone, além de uma parte percussiva bem elaborada e também pelas lindas poesias do pai, Antônio Carlos Arbo. 

O disco abre com a incrível "As Alamedas" e os violões e bandolim introduzindo um clima totalmente medieval. A levada dos violões acompanha os vocais feitos pela dupla, com acordes tristes e narrando a história dos enormes pinheiros que cobrem alamedas em busca da luz do sol e da lua. Quer algo mais progressivo que isso? A introdução é repetida, com os vocais novamente apresentando a letra. Por fim, Dimitri ainda nos brinda com uma intervenção de saxofone sobre efeitos percussivos de pratos e apitos, terminando com um solo de flauta andina acompanhado por violões e por um bumbo-leguero. 

O bandolim introduz "Jornada", bem como os violões que lembram as escalas do Gentle Giant nas apresentações ao vivo entre Ray Schulman e Gary Green. Os vocais trazem mais uma letra de Antônio Carlos, com a linha instrumental acompanhada pelo bandolim e pelo violão. O tema central está em um duelo marcado de notas entre bandolim e violão. A introdução é retomada, dando sequência à letra, que agora é acompanhada, além do bandolim e do violão, por efeitos de um teclado Casio bem primitivo, entrando em um belo conjunto de solos de flautas. Vocais ficam sozinhos, trazendo o refrão da letra, com violão, teclados e bandolim trazendo novamente o tema da introdução. 

Galões de gasolina, bumbos e muita percussão abrem a instrumental "Drakkars", a qual também conta com a participação de uma flauta solando insanamente. O teclado Casio novamente volta à ativa, executando um determinado tema. Harmônicos dos violões trazem uma parte cheia de vocalizações, que lembram cantos indígenas, com destaque para Negendre mandando ver no violão. A seguir, um engana-bobo aparece, já que temos um solo de flauta que até Ian Anderson diria se tratar de si mesmo a solar. Violões e flautas retomam o clima medieval. O lindo arranjo de Negendre e Dimitri é de chorar, com o clima medieval ficando denso na adição do teclado e também pela velocidade do violão. Por fim, o bumbo-leguero comanda o ritmo para o fantástico encerramento com o solo de flauta e os dedilhados do violão. Sensacional! 

Duas homenagens encerram o lado A. A bela "Liverpool", que homenageia o Fab Four, com uma linda introdução de violão e flauta, bem como os solos de Negendre ao violão e Dimitri ao sax, e "Gotas de Seresta", uma linda homenagem aos seresteiros dos anos 40/50, com um belíssimo trabalho do bandolim de Negendre e da flauta de Dimitri que nos fazem pensar em estar realmente ouvindo um 78 rpm. Além disso, a voz de Negendre é de arrepiar, e o encerramento então, pra fazer até o mais sério "metaleiro" ir as lágrimas. 

O lado B inicia com o barulho da Maria-Fumaça (famoso trem brasileiro) totalmente recriado pelos instrumentos da dupla, introduzindo "Viver", a qual lembra muito "I've Seen All Good People", do Yes. Os vocais aqui são de Dimitri, com destaque para o violão com distorção usado por Negendre e para o solo com o Casio. 

A flamenca "O Último Cigano" recria caminhos da região de Andaluzia. Construída sobre a intrincada peça de Negendre ao violão, é impossível não imaginar lindas morenas com castanholas dançando em nossa volta. Dimitri acompanha seu irmão no violão, e os vocais são acompanhados por acordes de teclado e passagens de violão. Essa canção, principalmente pela levada do violão, mostra como a música gaúcha tem influência da música espanhola, seja como uma milonga ou principalmente quando a parte percussiva surge, fazendo desta linda canção um quase chamamé (tradicional ritmo gaúcho). 

"Jardim das Delícias", criada somente pelos irmãos, tem um início no teclado de lembrar os álbuns da fase alemã do Bowie. Porém, a flauta e o violão já dão jeito de mudar isso. O saxofone leva a uma linda balada, com Negendre mandando ver no bandolim. Vocalizações de Negendre duelando com o seu violão, trazem o violão com distorção novamente, lembrando muito o som de uma guitarra. Lindos dedilhados de violão e o saxofone agonizante nos levam ao final dessa canção com a flauta acompanhando os vocais, que retomam a letra de "As Alamedas", encerrando com um MPB ao violão e sax. 

"Balada da Ausência" é outra linda canção construída sobre o trabalho no violão. Com muita percussão, o destaque maior vai para o arranjo de flautas na introdução, com sons de pássaros e a ocarina sendo usada abusivamente. Uma linda balada com um lindo poema de Antônio Carlos Arbo, acompanhado sempre pelo teclado Casio e pelos violões. 

Por fim, "O Mistério dos Quintais" encerra esse magnífico e fantástico álbum. A introdução com a ocarina, pássaros, percussão e com uma harpa é divina. Antônio Carlos declama o poema sobre a melodia da harpa e dos violões, que comandam a canção em notas iguais. O violão leva ao encerramento, acompanhado por flautas e por um clima emotivo de despedida. Novamente é difícil não se emocionar com o talento e com o sentimento empregado pelos irmãos Arbo. 

O duo participou em diversos festivais pelo Rio Grande, chegando inclusive a ter uma canção gravada no raro Projeto Cantares, de 1984 (a saber: o nome da canção era "O Vento e O Trigo"). O duo também continuou sua carreira na cena cool da Porto Alegre da década de oitenta. Na inauguração do famoso Bar Opinião, em 1985, a Quintal esteve presente, encantando muita gente que por ali passava. 

Em 1988 o duo acabou dissolvendo-se, com Negendre indo morar no Paraná. Os irmãos acabariam por registrar mais um álbum no ano de 1994, chamado Temporal e com a participação de Frank Cimino nos violões, mas que infelizmente nunca foi lançado. No Paraná, Negendre começou a construir diversos projetos, inclusive trabalhando com índios da região de Foz do Iguaçu, lançando álbuns fantásticos como Secret Face e Final Dance, enquanto Dimitri continuou seus trabalhos em Porto Alegre. 

Em 2008 Negendre voltou por uns dias para o Rio Grande do Sul, e, com a ajuda de alguns amigos, a Quintal de Clorofila, depois de vinte anos, voltava a fazer apresentações; uma em Porto Alegre, no Beco das Garrafas, em 11 de abril, e duas na cidade de Capão da Canoa, nos dias 19 e 20. 

Tive o prazer de ser um dos doze (eu me prestei a contar) participantes do retorno da banda no Beco das Garrafas, creio que pela falta de divulgação do show, e me emocionei muito com uma apresentação insana de Negendre declamando poemas e mais poemas tal qual o suor corria de seu corpo, enquanto um emocionado Dimitri mostrava seu talento nos mais diferentes instrumentos. Ainda por cima, tocaram uma inspirada versão de 16 minutos de "As Alamedas", onde, numa noite quente e estrelada, o Quintal conseguiu fazer chover na capital gaúcha. Ao final do show, ainda fiquei tomando cerveja e conversando com os caras durante horas, voltando para casa na madruga, sem ônibus e abaixo de um pé-d'água gigante, mas com a certeza de que era um privilegiado por ter visto dois talentos raros na música brasileira, os quais também são excelentes pessoas. 

Segundo Dimitri, o som da banda misturava jazz, rock, música medieval e ritmos africanos, orientais e latinos, no que ele chama de "rock viking". Porém, o Quintal era maior que isso. Na verdade, a complexidade e profundidade das canções inspiradas do duo são de notável presença e sentimento, e com certeza devem ser ouvidas e rê - ouvidas para sempre pelos apreciadores de boa música. 

O álbum O Mistério dos Quintais foi lançado com uma tiragem pequena, sendo encontrado (quando!) valendo até 500 reais. Porém, se catar na região central do Rio Grande do Sul, as vezes se brilha um LP por modestos cinquentinha. O CD teve um relançamento não autorizado pela dupla, através de amigos argentinos que copiaram o LP para .wav e depois ganharam dinheiro com o som do Quintal. Ao descobrir isso, Negendre fez questão de copiar o seu LP para .wav e .mp3 e distribuiu em diversos blogs que conhecia, sendo que o progshine.com foi um dos que mais ajudaram nesse ponto. Além disso, colocou as canções no site oficial do Quintal para quem quisesse baixar e ouvir, sem custos, com somente a intenção de divulgar o trabalho do Quintal (e claro, acabar com a criminalidade que os argentinos estavam fazendo). No site também colocou a disposição o álbum Temporal, mas atualmente o link está fora do ar. Aproveitando o frio e o feriado, chame seus pais, acenda uma lareira, torre os pinhões, ceve o chimarrão, coloque O Mistérios dos Quintais para rodar e segure as lágrimas. Texto: Baú do Mairon.
 
01. As Alamedas (5:19) 
02. Jornada (3:51)
03. Drakkars (5:29)
04. Liverpool (4:30)
05. Gotas de Seresta (2:59)
06. Viver (5:26)
07. O Último Cigano (5:27)
08. Jardim das Delícias (3:59)
09. Balada da Ausência (4:02)
10. O Mistério dos Quintais (3:18)
11. O Vento e o Trigo (5:16)
12. Liverpool (Alternative Version) (4:25)
 (192Kbps) 

 

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